domingo, 27 de outubro de 2013

Pär Lagerkvist - O Anão


Pär Lagerkvist criou o anão mais hediondo do universo literário. Inserido numa corte italiana, este anão mal humorado despreza visceralmente todos os seres humanos, com exceção, talvez, do seu amo («De todos os seres que tenho encontrado, é o único que não desprezo.»), ainda que, volta e meia, nem mesmo o príncipe escape à misantropia desta criatura («(...) contentar-me-ei em repetir o que já disse antes: que o meu desprezo por ele não conhece limites.»). Esta indecisão é a única falha que podemos apontar à sua coerência, em tudo o resto ele é, coerentemente, sórdido.
Vendido pela própria mãe («Fui assim vendido por minha mãe, que se afastou de mim com horror ao ver o ser que tinha saído do seu ventre, sem compreender que eu descendia duma velhíssima raça.»), foi sempre incapaz de amar e raramente experimenta contentamento («Eu? Eu que não sinto prazer em nada!»). A única coisa que o entusiasma é a possibilidade de sangrentos combates («Tenho sede de sangue!»), a guerra excita-o enquanto os momentos de paz o deprimem e lhe parecem preenchidos «por uma interminável tagarelice».
Ainda que em tempos idos, os anões fossem integrados nas cortes para fazerem de bobos, este «nunca se rebaixou a semelhantes manifestações», nem tão pouco chegou a lamentar o aspeto que lhe coube em sorte («De modo algum me desagrada pertencer a uma raça diferente da raça actual e que isso seja visível na minha pessoa.»). Mesmo convicto da superioridade da sua raça, despreza todos os outros anões com quem conviveu e tudo fez para que, um a um, fossem desaparecendo da sua beira, era-lhe penoso vê-los sujeitarem-se a tamanhas humilhações («Sinto-me feliz por estar só. O meu destino é odiar as criaturas da minha própria espécie. A minha própria estirpe é-me execrável!»).
Profundamente dedicado ao seu príncipe («Eu sentia por ele uma dedicação apaixonada»), agrada-lhe a posição que ocupa na corte, sente-se poderoso por frequentar o círculo próximo dos monarcas, por imiscuir-se na sua intimidade e conhecer em primeira mão todos os planos e segredos da corte.
«Piccolino» carrega em si toda a maldade do mundo. Os homens com quem se cruza temem-no porque nos seus olhos veem refletido todo o mal que trazem no seu âmago e que cobrem com o manto da decência exigida em sociedade. Pelo contrário, este anão é transparente («Não abrigo nenhum desconhecido. E reconheço tudo o que vem de mim, nada surge nos subterrâneos do meu ser, pois nada lá se encontra oculto na sombra.»), é cruel e isso não o angustia («Não, eu não conheço nem a angústia nem os remorsos, nenhum sentimento que possa especialmente comover-me.»).
Sem artifícios ou floreados, a escrita de Pär Lagerkvist permite que este diário transmita com um realismo admirável todos os sentimentos de um anão repugnante e invulgar. Estados de espírito que oscilam entre a euforia e o desânimo são revelados ao leitor com uma aparente simplicidade estilística, numa obra que rapidamente se transforma, afinal, num retrato perfeito e assustador da perversidade da consciência humana.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Valter Hugo Mãe - A Desumanização


O Filho de Mil Homens deixou-me saudades que se foram agigantando nestes dois anos de espera. Foi duro, mas deixem-me que vos diga, não foi em vão, A Desumanização é um livro imperdível. Claro que isso não faz com que seja fácil falar sobre ele, pelo contrário, mesmo depois de o ler duas vezes foram precisas outras tantas semanas para arrancar a ferros este texto miserável que vos deixo.
Não podemos definir este romance apenas como uma história dramática vivida nos inóspitos fiordes islandeses. Que nos falte a coragem para sujeitá-lo a tão débil definição quando se trata de um livro que fala, entre tantas outras coisas, de crescimento, de insularidade, de luto, de solidão, de amor, de medo, de busca de identidade. Muito de pessoas, outro muito de paisagem. Mas esta Islândia nunca se contentaria em ser somente um cenário, é uma personagem forte, esmagadora, também ela em transformação descontrolada, que condiciona a existência de todas as outras personagens («Era igual a querermos controlar o nervoso da Islândia. Da Islândia inteira. Um nervoso que se nos impunha, tão vulneráveis e para tudo deixados à deriva.»).
A narradora, Halldora, é uma menina de 11 anos que perde a irmã gémea («Foram dizer-me que a plantavam.») e se vê obrigada a descobrir uma forma de persistir com essa falha, com essa metade desarraigada da sua pessoa, no seio de uma família despedaçada pela tristeza. Amando um pai esvaziado («(...) era agora um homem encurralado. Impotente. Com os nervos a toldarem-lhe as ideias. Ainda generoso, mas confuso. Não escapava de si mesmo. Andava singular, e singular se predava, se abatia. Sozinho, o meu pai seria suficiente para se consumir. Para se acabar.») e defendendo-se de uma mãe que o sofrimento tornou cruel.
Halldora cresce em carne viva, «atrapalhada com ser ainda criança e ter dentro toda a dor do mundo». Sem orientação, consente que a inocência da infância se extinga («Não me ajudavam a regressar à infância. À desimportância da infância.») e, muito mais rápido do que merecia, torna-se mulher («Era uma mulher tão completa quanto apenas a tristeza as sabia fazer.»). Assistimos impotentes às suas escolhas questionáveis, próprias da adolescência, e vemo-la perder-se entre as incertezas do que queria («(...) confessei que me vinha ao coração uma vontade muito grande de partir o corpo. Alguém afirmou que eu me viciara na duplicação. Não tinha identidade própria. Era uma aberração. Queria fugir. Quem quer fugir já metade foi embora.») e a convicção do que não queria. E o que Halldora (e Sigridur) não queria(m) era continuar a ser aquilo («Escutaria a tristeza dos nossos dias. Recusava-se a nascer para aquilo. Para ser o que éramos nós.»).

Um romance inesquecível escrito em frases curtas que não são mais do que versos de poemas ligados por vírgulas ou pontos finais numa linha contínua. Frases curtas que se organizam em capítulos igualmente curtos. Apesar de ser um livro profundamente triste, houve espaço para deixar transparecer um pouco do humor de Valter Hugo Mãe. Tinha de existir esta tia «solteirona e larga, como uma mulher que comera um urso sozinha. Ressonava como se o urso ainda estivesse a refilar dentro dela, reclamando que o deixasse sair.». Era preciso sorrir no meio de tanta tristeza opressora.

Gudmundur diz que «A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro. (...) Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça.». O propósito de um livro também só se cumpre se existirem ao menos dois. Para que um escreva e o outro leia. No entanto, só a beleza pode distinguir e enaltecer uma obra. A deste romance existe, é real porque a posso partilhar convosco. Não tarda seremos muitos, a ler, a partilhar, e a provar que a literatura torna o Mundo todos os dias um bocadinho mais bonito. Ainda que ele esteja, efetivamente, a desumanizar-se.
 
 
Citações:
 
«Por serem ingénuas, as ovelhas levavam os corações puros que apenas suportavam a alegria de comerem do chão sem surpresas.»
 
«Fui confirmar ao meu pai que descobrira a pânico. Um instante em que o interior nos vinha à pele estarrecido com o nojento das entranhas.»
 
«Quando falo, não entrego nada. Deixo mesmamente despido quem tem frio e não encho a barriga dos que têm fome. Quando falo, o que faço é perto de não fazer nada e, no entanto, cria-nos a sensação de fazer tanto.»
 
«Talvez tivessem sido os pássaros mais tristes quem levara os lagos para os topos difíceis das montanhas. Apenas os pássaros poderiam ter sofrido tanto em tão altos e distantes lugares.»
 
«Ali me sentei, nem chorando, descansando os braços do berço triste que haviam feito.»
 
«Disse-lhe que não aceitava mais ser criança. As crianças não sepultam filhos. Quem sepulta um filho não tem idade.»
 
«E acreditar que deus se ocuparia também dos nossos destinos era uma casmurrice, talvez. Uma pretensão toda a dar-se importância. (…) Deus certamente bocejaria se assistisse ao espectáculo pequenino das nossas vidas. Estaria indubitavelmente olhando para outro lado, para outro lugar. (…) Deus devia estar ocupado com mais gente. Lugares de mais gente. Onde verdadeiramente alguém se revelasse excecional e admirável.»
 
«Os livros podiam ser atentos ou desatentos ao modo como contavam. Nós, inspecionando muito rigorosamente, achávamos melhores aqueles que falavam como se inventassem modos de falar. Para percebermos melhor o que, afinal, era reconhecido mas nunca fora dito antes. Os melhores livros inauguravam expressões. Diziam-nas pela primeira vez como se as nascessem. Ideias que nasciam para caberem nos lugares obscuros da nossa existência.»

sábado, 5 de outubro de 2013

Susana Moreira Marques - Agora e na Hora da Nossa Morte


A morte assusta. Não gostamos de pronunciar o seu nome com medo que nos ronde. O que dizer então de quem vai à sua procura? Foi o que Susana Moreira Marques fez, foi a terras de gente a quem a morte andava a rondar. Embrenhou-se em Trás-os-Montes, em aldeias que, pelo isolamento, se não tresandam a morte, a vida é que não cheiram de certeza e, de forma corajosa, acompanhou profissionais que são verdadeiros heróis a quem nunca se fará justiça.

A autora quis saber os pensamentos mais íntimos de um moribundo, aqueles que se revelam nas horas de maior desespero. «Se eu regressar, bater à porta mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez, se eu tiver tempo, tempo sem pressa, disfarçando que nasci na cidade, se eu souber ouvir melhor, cada palavra sentindo-se acarinhada e compreendida, se eu souber o que fazer com as mãos e não tirar notas, será que as pessoas vão abrir e dizer o que realmente pensam nas solitárias e lentas horas da noite?». Talvez fosse um trabalho inglório, impossível de realizar, há coisas que nem um moribundo tem coragem de confessar, ainda que já não haja nada a perder senão tempo. Mas Susana Moreira Marques conseguiu ao menos fazer com que as memórias destas pessoas não morressem com elas. Deixa-nos também a certeza de que cada pessoa tem uma história extraordinária para contar, basta irmos atrás dela, de coração aberto. Não é preciso vasculhar nem invadir os baús guardados no sótão, basta ouvir. Abrir o peito, puxar de um banquinho, deixar os julgamentos e preconceitos no umbral da porta de entrada, e simplesmente ouvir.

Esta jornalista procurou a morte e encontrou-a. Mas a morte não estava só, a morte não se conseguiu desenvencilhar do conceito de família que só existe nestes ermos que o país esconde com vergonha, em vez de se orgulhar e congratular por existirem. É por isso que os emigrantes voltam sempre em agosto. É por isso que não havendo crianças na maior parte do ano, estes lugares se enchem de berros e gargalhadas no verão. Porque nestas aldeias isoladas de tudo, existe um amor que aquela gente não conhece palavras para explicar. Um amor empático, altruísta. Um amor que é feito de dar, gerado pela necessidade de partilhar a solidão e o isolamento. É a esse amor que chegamos quando o resto do mundo nos vota ao esquecimento. «Quereria voltar ao fim do mundo uma e outra vez, porque uma e outra vez quereria recuperar o que no meu mundo (o centro?) parecia estar perdido: uma certa maneira de mostrar o amor.»
Neste livro pequenino, intenso, fala-se sobre morte mas enaltecem-se os afetos e o facto de se estar vivo. Há quem diga que não é preciso sofrer para saber o que é o sofrimento, mas eu cá concordo com a Paula: «ai, a gente só sabe é quando as passa».
 
 
Citações:

«Eu parece-me que há qualquer coisa depois da morte. Tenho essa ideia. Tanto nos metiam medo com coisas, para que nos andariam a enganar? Mas não sei. Os que morreram não escrevem, não telefonam, e a gente fica sem saber.»
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