quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Clarice Lispector - Água Viva

 
«Deixo-me acontecer.» E assim nasceu este livro. Não me interessa, por agora, saber se quem se deixa acontecer é a própria autora ou apenas a protagonista de um romance ficcionado. Se for este o caso, para simplificar, daqui para a frente chamar-lhe-ei Clarice.
Mas como comentar racionalmente uma obra quando ela própria não o é?
«Será que isto que estou te escrevendo é atrás do pensamento? Raciocínio é que não é. Quem for capaz de parar de raciocinar - o que é terrivelmente difícil - que me acompanhe.» Tentei. Talvez tenha conseguido algumas vezes, em muitas falhei.
Se escrever sobre Clarice é um exercício difícil, lê-la não o é menos.
Somos arrastados nesta invasão impudica à cabeça de um ser humano, em instantes tão anteriores à formação do pensamento. É um livro orgânico, nascido de um doloroso parto - palavra tantas vezes repetida.
«Eu não tenho enredo de vida? sou inopinadamente fragmentária. Sou aos poucos. Minha história é viver.» E assim vive também esta obra, construída pela união de poesias em prosa, não necessariamente consecutivas. Parágrafos que podem ser lidos aleatoriamente sem que percam o seu propósito. Estas páginas gritam desordem e fragmentação porque essa é a (i)lógica do pensamento.
«Ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de sentido nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve. A densa selva de palavras envolve espessamente o que sinto e vivo, e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que fica fora de mim.»
Quantas vezes quis abraçá-la ainda que soubesse que ela repeliria esse abraço.
É tão difícil ler Clarice, mas devia ser tão mais difícil sê-lo.
 
Obrigada à Ju, a maior amante de Clarice que já conheci, que me ofereceu este livro e, sem querer e sem saber, me incutiu urgência em lê-lo.
 
 
Citações:
 
«Vou agora mesmo prestar-te contas daquela primavera que foi bem seca. O rádio estalava ao captar-lhe a estática. A roupa eriçava-se ao largar a eletricidade do corpo e o pente erguia os cabelos imantados - esta era uma dura primavera. Ela estava exausta do inverno e brotava toda elétrica.(...)
Mas eu percebia um primeiro rumor como o de um coração batendo debaixo da terra. Colocava quietamente o ouvido no chão e ouvia o verão abrir caminho por dentro e o meu coração embaixo da terra - "nada! eu não disse nada!" - e sentia a paciente brutalidade com que a terra fechada se abria por dentro em parto, e sabia com que peso de doçura o verão amadurecia cem mil laranjas (...).»
 
«Mas por que esse mal-estar? É porque não estou vivendo do único modo que existe para cada um de se viver e nem sei qual é.»
 
«Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se.»
 
«Ah viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não para, viver parece ter sono e não poder dormir - viver é incômodo.»

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