segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Os (Meus) Melhores de 2013



Por ordem totalmente aleatória:
  • Afonso Cruz - Jesus Cristo Bebia Cerveja
  • Maria do Rosário Pedreira - Poesia Reunida
  • Valter Hugo Mãe - A Desumanização
  • Javier Marías - Coração Tão Branco
  • Pär Lagerkvist - O Anão

domingo, 1 de dezembro de 2013

Dicas Para Ler Mais

Fiz um vídeo para aquelas pessoas que:

a) Não gostam de ler;
b) Dizem que gostavam de ler mais mas não conseguem;
c) Perguntam constantemente: "Mas como é que tu lês "tantos" livros?"



Quem não tem um amigo que precisa de um incentivozinho?

domingo, 27 de outubro de 2013

Pär Lagerkvist - O Anão


Pär Lagerkvist criou o anão mais hediondo do universo literário. Inserido numa corte italiana, este anão mal humorado despreza visceralmente todos os seres humanos, com exceção, talvez, do seu amo («De todos os seres que tenho encontrado, é o único que não desprezo.»), ainda que, volta e meia, nem mesmo o príncipe escape à misantropia desta criatura («(...) contentar-me-ei em repetir o que já disse antes: que o meu desprezo por ele não conhece limites.»). Esta indecisão é a única falha que podemos apontar à sua coerência, em tudo o resto ele é, coerentemente, sórdido.
Vendido pela própria mãe («Fui assim vendido por minha mãe, que se afastou de mim com horror ao ver o ser que tinha saído do seu ventre, sem compreender que eu descendia duma velhíssima raça.»), foi sempre incapaz de amar e raramente experimenta contentamento («Eu? Eu que não sinto prazer em nada!»). A única coisa que o entusiasma é a possibilidade de sangrentos combates («Tenho sede de sangue!»), a guerra excita-o enquanto os momentos de paz o deprimem e lhe parecem preenchidos «por uma interminável tagarelice».
Ainda que em tempos idos, os anões fossem integrados nas cortes para fazerem de bobos, este «nunca se rebaixou a semelhantes manifestações», nem tão pouco chegou a lamentar o aspeto que lhe coube em sorte («De modo algum me desagrada pertencer a uma raça diferente da raça actual e que isso seja visível na minha pessoa.»). Mesmo convicto da superioridade da sua raça, despreza todos os outros anões com quem conviveu e tudo fez para que, um a um, fossem desaparecendo da sua beira, era-lhe penoso vê-los sujeitarem-se a tamanhas humilhações («Sinto-me feliz por estar só. O meu destino é odiar as criaturas da minha própria espécie. A minha própria estirpe é-me execrável!»).
Profundamente dedicado ao seu príncipe («Eu sentia por ele uma dedicação apaixonada»), agrada-lhe a posição que ocupa na corte, sente-se poderoso por frequentar o círculo próximo dos monarcas, por imiscuir-se na sua intimidade e conhecer em primeira mão todos os planos e segredos da corte.
«Piccolino» carrega em si toda a maldade do mundo. Os homens com quem se cruza temem-no porque nos seus olhos veem refletido todo o mal que trazem no seu âmago e que cobrem com o manto da decência exigida em sociedade. Pelo contrário, este anão é transparente («Não abrigo nenhum desconhecido. E reconheço tudo o que vem de mim, nada surge nos subterrâneos do meu ser, pois nada lá se encontra oculto na sombra.»), é cruel e isso não o angustia («Não, eu não conheço nem a angústia nem os remorsos, nenhum sentimento que possa especialmente comover-me.»).
Sem artifícios ou floreados, a escrita de Pär Lagerkvist permite que este diário transmita com um realismo admirável todos os sentimentos de um anão repugnante e invulgar. Estados de espírito que oscilam entre a euforia e o desânimo são revelados ao leitor com uma aparente simplicidade estilística, numa obra que rapidamente se transforma, afinal, num retrato perfeito e assustador da perversidade da consciência humana.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Valter Hugo Mãe - A Desumanização


O Filho de Mil Homens deixou-me saudades que se foram agigantando nestes dois anos de espera. Foi duro, mas deixem-me que vos diga, não foi em vão, A Desumanização é um livro imperdível. Claro que isso não faz com que seja fácil falar sobre ele, pelo contrário, mesmo depois de o ler duas vezes foram precisas outras tantas semanas para arrancar a ferros este texto miserável que vos deixo.
Não podemos definir este romance apenas como uma história dramática vivida nos inóspitos fiordes islandeses. Que nos falte a coragem para sujeitá-lo a tão débil definição quando se trata de um livro que fala, entre tantas outras coisas, de crescimento, de insularidade, de luto, de solidão, de amor, de medo, de busca de identidade. Muito de pessoas, outro muito de paisagem. Mas esta Islândia nunca se contentaria em ser somente um cenário, é uma personagem forte, esmagadora, também ela em transformação descontrolada, que condiciona a existência de todas as outras personagens («Era igual a querermos controlar o nervoso da Islândia. Da Islândia inteira. Um nervoso que se nos impunha, tão vulneráveis e para tudo deixados à deriva.»).
A narradora, Halldora, é uma menina de 11 anos que perde a irmã gémea («Foram dizer-me que a plantavam.») e se vê obrigada a descobrir uma forma de persistir com essa falha, com essa metade desarraigada da sua pessoa, no seio de uma família despedaçada pela tristeza. Amando um pai esvaziado («(...) era agora um homem encurralado. Impotente. Com os nervos a toldarem-lhe as ideias. Ainda generoso, mas confuso. Não escapava de si mesmo. Andava singular, e singular se predava, se abatia. Sozinho, o meu pai seria suficiente para se consumir. Para se acabar.») e defendendo-se de uma mãe que o sofrimento tornou cruel.
Halldora cresce em carne viva, «atrapalhada com ser ainda criança e ter dentro toda a dor do mundo». Sem orientação, consente que a inocência da infância se extinga («Não me ajudavam a regressar à infância. À desimportância da infância.») e, muito mais rápido do que merecia, torna-se mulher («Era uma mulher tão completa quanto apenas a tristeza as sabia fazer.»). Assistimos impotentes às suas escolhas questionáveis, próprias da adolescência, e vemo-la perder-se entre as incertezas do que queria («(...) confessei que me vinha ao coração uma vontade muito grande de partir o corpo. Alguém afirmou que eu me viciara na duplicação. Não tinha identidade própria. Era uma aberração. Queria fugir. Quem quer fugir já metade foi embora.») e a convicção do que não queria. E o que Halldora (e Sigridur) não queria(m) era continuar a ser aquilo («Escutaria a tristeza dos nossos dias. Recusava-se a nascer para aquilo. Para ser o que éramos nós.»).

Um romance inesquecível escrito em frases curtas que não são mais do que versos de poemas ligados por vírgulas ou pontos finais numa linha contínua. Frases curtas que se organizam em capítulos igualmente curtos. Apesar de ser um livro profundamente triste, houve espaço para deixar transparecer um pouco do humor de Valter Hugo Mãe. Tinha de existir esta tia «solteirona e larga, como uma mulher que comera um urso sozinha. Ressonava como se o urso ainda estivesse a refilar dentro dela, reclamando que o deixasse sair.». Era preciso sorrir no meio de tanta tristeza opressora.

Gudmundur diz que «A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro. (...) Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça.». O propósito de um livro também só se cumpre se existirem ao menos dois. Para que um escreva e o outro leia. No entanto, só a beleza pode distinguir e enaltecer uma obra. A deste romance existe, é real porque a posso partilhar convosco. Não tarda seremos muitos, a ler, a partilhar, e a provar que a literatura torna o Mundo todos os dias um bocadinho mais bonito. Ainda que ele esteja, efetivamente, a desumanizar-se.
 
 
Citações:
 
«Por serem ingénuas, as ovelhas levavam os corações puros que apenas suportavam a alegria de comerem do chão sem surpresas.»
 
«Fui confirmar ao meu pai que descobrira a pânico. Um instante em que o interior nos vinha à pele estarrecido com o nojento das entranhas.»
 
«Quando falo, não entrego nada. Deixo mesmamente despido quem tem frio e não encho a barriga dos que têm fome. Quando falo, o que faço é perto de não fazer nada e, no entanto, cria-nos a sensação de fazer tanto.»
 
«Talvez tivessem sido os pássaros mais tristes quem levara os lagos para os topos difíceis das montanhas. Apenas os pássaros poderiam ter sofrido tanto em tão altos e distantes lugares.»
 
«Ali me sentei, nem chorando, descansando os braços do berço triste que haviam feito.»
 
«Disse-lhe que não aceitava mais ser criança. As crianças não sepultam filhos. Quem sepulta um filho não tem idade.»
 
«E acreditar que deus se ocuparia também dos nossos destinos era uma casmurrice, talvez. Uma pretensão toda a dar-se importância. (…) Deus certamente bocejaria se assistisse ao espectáculo pequenino das nossas vidas. Estaria indubitavelmente olhando para outro lado, para outro lugar. (…) Deus devia estar ocupado com mais gente. Lugares de mais gente. Onde verdadeiramente alguém se revelasse excecional e admirável.»
 
«Os livros podiam ser atentos ou desatentos ao modo como contavam. Nós, inspecionando muito rigorosamente, achávamos melhores aqueles que falavam como se inventassem modos de falar. Para percebermos melhor o que, afinal, era reconhecido mas nunca fora dito antes. Os melhores livros inauguravam expressões. Diziam-nas pela primeira vez como se as nascessem. Ideias que nasciam para caberem nos lugares obscuros da nossa existência.»

sábado, 5 de outubro de 2013

Susana Moreira Marques - Agora e na Hora da Nossa Morte


A morte assusta. Não gostamos de pronunciar o seu nome com medo que nos ronde. O que dizer então de quem vai à sua procura? Foi o que Susana Moreira Marques fez, foi a terras de gente a quem a morte andava a rondar. Embrenhou-se em Trás-os-Montes, em aldeias que, pelo isolamento, se não tresandam a morte, a vida é que não cheiram de certeza e, de forma corajosa, acompanhou profissionais que são verdadeiros heróis a quem nunca se fará justiça.

A autora quis saber os pensamentos mais íntimos de um moribundo, aqueles que se revelam nas horas de maior desespero. «Se eu regressar, bater à porta mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez, se eu tiver tempo, tempo sem pressa, disfarçando que nasci na cidade, se eu souber ouvir melhor, cada palavra sentindo-se acarinhada e compreendida, se eu souber o que fazer com as mãos e não tirar notas, será que as pessoas vão abrir e dizer o que realmente pensam nas solitárias e lentas horas da noite?». Talvez fosse um trabalho inglório, impossível de realizar, há coisas que nem um moribundo tem coragem de confessar, ainda que já não haja nada a perder senão tempo. Mas Susana Moreira Marques conseguiu ao menos fazer com que as memórias destas pessoas não morressem com elas. Deixa-nos também a certeza de que cada pessoa tem uma história extraordinária para contar, basta irmos atrás dela, de coração aberto. Não é preciso vasculhar nem invadir os baús guardados no sótão, basta ouvir. Abrir o peito, puxar de um banquinho, deixar os julgamentos e preconceitos no umbral da porta de entrada, e simplesmente ouvir.

Esta jornalista procurou a morte e encontrou-a. Mas a morte não estava só, a morte não se conseguiu desenvencilhar do conceito de família que só existe nestes ermos que o país esconde com vergonha, em vez de se orgulhar e congratular por existirem. É por isso que os emigrantes voltam sempre em agosto. É por isso que não havendo crianças na maior parte do ano, estes lugares se enchem de berros e gargalhadas no verão. Porque nestas aldeias isoladas de tudo, existe um amor que aquela gente não conhece palavras para explicar. Um amor empático, altruísta. Um amor que é feito de dar, gerado pela necessidade de partilhar a solidão e o isolamento. É a esse amor que chegamos quando o resto do mundo nos vota ao esquecimento. «Quereria voltar ao fim do mundo uma e outra vez, porque uma e outra vez quereria recuperar o que no meu mundo (o centro?) parecia estar perdido: uma certa maneira de mostrar o amor.»
Neste livro pequenino, intenso, fala-se sobre morte mas enaltecem-se os afetos e o facto de se estar vivo. Há quem diga que não é preciso sofrer para saber o que é o sofrimento, mas eu cá concordo com a Paula: «ai, a gente só sabe é quando as passa».
 
 
Citações:

«Eu parece-me que há qualquer coisa depois da morte. Tenho essa ideia. Tanto nos metiam medo com coisas, para que nos andariam a enganar? Mas não sei. Os que morreram não escrevem, não telefonam, e a gente fica sem saber.»

domingo, 22 de setembro de 2013

Ricardo Lísias - O Livro dos Mandarins


Ricardo Lísias é um autor brasileiro que inexplicavelmente ainda não se encontra publicado em Portugal - Hello? Editoras? Alguém aí? Knock knock! A minha curiosidade aumentava cada vez que alguém falava (sempre bem) sobre O Céu dos Suicidas ou Divórcio. A bem da verdade ainda não tinha lido comentários a este título (simpaticamente oferecido pela gentil, sempre adorada, Denise), mas só esperava coisas boas. Às primeiras páginas quase tive uma epifania. A forma de contar a história é muito original: num fluxo, sem pausas, as descrições e diálogos vão acontecendo dando voz, ora à consciência de uma personagem, ora à consciência de outra, ou até mesmo à experiência de um narrador heterodiegético omnisciente. E quando digo um fluxo, quero dizer que de facto o que está para a frente se liga ao que ficou para trás e que este passado condiciona tudo. Condiciona por exemplo a evolução do nome das personagens que nunca é estanque, embora todos os nomes tenham tendência a pertencer à mesma família (Paulo, Paula, Paulinho, Paul, Paulson, Paul* ou diversos Omar Hasan Ahmad al-Bashir). A juntar a isto temos previsões certas de um futuro que, descobrimos mais tarde, pode não chegar a acontecer.
É um livro fácil de ler, a atenção que requer na identificação das personagens é compensada pelas repetições exaustivas de uma ideia ou de um parágrafo que ficamos a conhecer de cor, como se a história fosse contada várias vezes. Sim, já sabemos que a personagem principal é uma admiradora fervorosa do "ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso", que tem uma dor de costas que "se desloca e cada dia fica em um lugar diferente" e que esta melhoraria (ou melhorará?) com o "uso da Ceragem, uma cama que, com quarenta minutos por dia, alivia a dor nas costas de qualquer um".
Este não é um livro sobre a China. Na realidade é um livro sobre negócios, sobre corporações, sobre lealdade constitucional, sobre ambição e sobre assuntos mais sérios que não adianta agora aflorar. Tudo abordado com um toque de humor saudável e indispensável.
Para mim o melhor é a forma como está escrito, surpreendente a cada passo, embora me parecesse mais sensato que tivesse menos páginas. O pior é mesmo esta sensação de confusão que me assaltou quando virei a última página, a certeza de não ter alcançado o objetivo e a malograda esperança de assistir a um final que pudesse dar sentido a tantas pontas soltas. Se não for pedir muito, alguém que me dê a mão.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Jorge de Sousa Braga - O Poeta Nu (Poesia)


Não é novidade que eu não sei - nem tento - escrever ou falar sobre poesia. Guio-me pela opinião que tenho de que para gostarmos de um poema temos, de certa forma, de nos identificar com ele. Ou porque fala de fases da vida pelas quais já passámos, ou porque retrata emoções que julgamos já ter sentido - ou até porque as retrata tão bem que nos coloca na pele do sujeito poético -, ou porque tem um humor semelhante ao nosso, ou simplesmente porque transmite uma ideia genial que nos deixa embasbacados por alguém ter tido o discernimento de pensar nela.
Se eu estiver certa, esse é o motivo de eu não poder dizer que gosto sinceramente de Jorge de Sousa Braga. Não nos identificamos. É verdade que o achei genial por vezes e é também verdade que me ri com gosto, mas, em bem mais de metade da obra, não me relacionei com o que estava a ler. Fui confundida pelo non-sense e encontrei ciências exatas a inundar o tempo que guardo para a literatura. Para mais, mesmo sabendo que longe vão os tempos (ainda bem!) da obrigatoriedade dos formatos rígidos, não pude deixar de evitar pensar que estava a ler pensamentos e não poesia.
Deixo-vos os poemas que assinalei. Porquê estes? Nem que me pedissem muito saberia explicar.


«Era quase tão bela como a Vénus de Milo. Um dia cortou
os braços a sangue frio»


«Poema de Amor

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que não
te coubesse no dedo»


«Levaram-no ao Serviço de Urgência. Perdera a fala
subitamente. O médico que o assistiu veio a apurar que
ligara as cordas vocais entre si para conseguir escapar
da sua prisão interior.»


«Lagoa Comprida

Sempre me intrigaram esses lagos de montanha alcan-
dorados nas nuvens. É como se fossem gigantescas taças
de orvalho que as montanhas erguessem para brindar
a cada novo dia.»


«Remos

Uma das coisas que aprendi muito cedo ainda foi a remar.
De modo a conjugar o som dos remos a cortarem a água
com o bater do meu coração.

Aprendi primeiro a remar contra a corrente. E agora
não sei - nem ouso - remar de outra maneira.»


«Vulcões

É cada vez mais reduzido o número de vulcões em acti-
vidade: o Stromboli, o Etna... Só de longe a longe nos
chegam ecos de uma súbita erupção.

Lentamente a terra vai perdendo a ilusão de que é uma
estrela!»

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Maria Teresa Horta - As Luzes de Leonor

 
Um extensíssimo poema sobre uma mulher nascida no Século das Luzes que dedicou a sua vida à busca da sabedoria e do conhecimento. Sempre muito à frente dos seus, bateu-se por um país que não fosse minado de intrigas e jogos políticos, lutou contra o despotismo que lhe marcou a infância e a juventude, questionou as proibições impostas ao sexo feminino e nunca se deixou vergar pelo que queriam impor-lhe.
Uma mulher culta e inteligente que foi presença notada em todas as cortes que frequentou, que tinha tantos admiradores quantos inimigos, que à imposição de casar e ter filhos respondeu com a necessidade de saber sempre mais. Enfurecia-se com a banalidade da sociedade portuguesa, o que fez com que, contrariando o pai severo, ousasse sair do país. Quis viajar, correr mundo à procura dos Grandes com os quais acabou por privar. Uma mulher com carácter e detentora de uma coragem invulgar que D. Maria, Carlota Joaquina e até Maria Antonieta fizeram questão de ter a seu lado.
Maria Teresa Horta revive a história de Leonor de Almeida, uma filha das Luzes que procurou sempre mais do que encontrou, que deu à poesia o que não soube ou não quis dar aos filhos. Para contá-la, recorre a uma linguagem poética utilizando um vastíssimo vocabulário que se enovela em metáforas e aliterações. Uma fórmula de sucesso, talvez a única capaz de espelhar todo o esplendor do século XVIII, de invadir a imaginação do leitor convidando-o a sentar-se a mesas fartas e a passear pelas ruas de uma Europa que a custo se iluminava.
 

sábado, 14 de setembro de 2013

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Amélie Nothomb - A Cosmética do Inimigo

 
Este livro nasce de um diálogo forçado numa sala de embarque de um aeroporto. Um homem abeira-se de um desconhecido que lê em paz e insiste em contar-lhe a história da sua vida. Depois de se debater inutilmente, Jérôme Angust conclui finalmente que não lhe resta outra hipótese senão ouvir o que aquele louco tem para lhe dizer. Não é ainda aqui que desconfiamos que a própria autora do livro será tão louca como Textor Texel mas não faltarão muitas páginas até isso acontecer.
É num estilo muito direto que Amélie Nothomb desenvolve a história impensável de um tresloucado. Um relato descorado onde raramente conseguia vislumbrar a Amélie Nothomb de Temor e Tremor. Senti-me orfã e desamparada em frases curtas, de ironia previsível, nas quais se antevia um pouco de génio - entenda-se feitio - mas longe da hilaridade do livro que retratou brilhantemente a sua experiência profissional no Japão.
E a verdade é que chegada à segunda metade de um livro tão pequeno eu já não esperava grande coisa. Engano e problema eu. Fui apanhada completamente desprevenida, vi-me chegar àquele estado descontrolado em que esbugalhamos os olhos, voltamos a página atrás e não somos capazes de acreditar no que estamos a ler. Isto uma vez. Meia dúzia de páginas à frente, volta a acontecer. Perdi de tal forma o chão que acho que ainda não estou recomposta.
Não esperem uma obra literária imperdível mas convençam-se que é uma história de doidos que nos endoidece irremediavelmente. A um preço absurdo de 2,5€ eu diria que vale bem a pena arriscar uma entrada pela porta grande no Júlio de Matos.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Afonso Cruz - O Livro do Ano


Desesperada, a passar por dias difíceis em que nenhum livro me apaixona, recorro a um abrigo seguro e refugio-me na melhor descoberta deste ano: Afonso Cruz.

«Nenhum homem é mais alto do que o seu chapéu.
A não ser quando levanta os braços.
Isso acontece quando está feliz.»

É anatomicamente possível levantar os braços enquanto se lê?
Precisava desse movimento, do tanto que me sinto feliz por haver livros assim.
Livros simples que se desfiam em frases, ilustrações e sorrisos. Neste caso, 365 sorrisos. Ou mais. Tantos quantos couberem em todos os dias de um ano real ou imaginado.

domingo, 11 de agosto de 2013

Entrevista a Ondjaki


Quando a Denise me convidou a preparar esta entrevista a quatro mãos, eu nem quis acreditar. À minha frente tinha a oportunidade de perguntar diretamente a Ondjaki algumas dúvidas que me inquietavam, isto se conseguisse livrar-me do embasbacamento tão pouco objetivo de uma leitora emocionalmente envolvida.
O escritor angolano, que publicou recentemente o romance «Os Transparentes», dispensa apresentações, mas nunca é de mais reler o post extraordinário que a Denise fez sobre ele e que foi, afinal, o causador desta entrevista.
Contas feitas, fica para a história a generosidade destas duas pessoas: a da Denise pelo convite e a do Ondjaki pela imensa disponibilidade, neste que é, sem dúvida, o post mais interessante deste blog. Não nos atrasemos, pois, a partilhar o essencial:
 
Inês: Viveu em Luanda, em Lisboa, no Rio de Janeiro. São três cidades diferentes, em três continentes diferentes. Para além da língua, há mais alguma coisa que as una?
Deve haver... Mas são cidades radicalmente diferentes, no tecido humano, paisagístico. Eu realmente não saberia dizer o que as une, porque mesmo a língua parece (e talvez seja) a mesma, mas depois a linguagem e o 'modo de falar' é muito diversificado. Por modo de falar entendo mais do que a fala, também o modo de comunicar, de brincar, de esperar, celebrar. É uma pergunta difícil. Tento responder daqui a dez anos.
 
Denise: Vários escritores brasileiros já foram mencionados como influentes na sua formação (Graciliano, Manoel de Barros, Guimarães Rosa e Clarice). O conto "lábios em lava", da coletânea "e se amanhã o medo", tem como epígrafe um trecho do mexicano Carlos Fuentes. Como é sua relação com a literatura latino-americana? Quais outros escritores latino-americanos foram importantes na sua formação e te inspiram?
Costumo dizer que são mais os livros que os autores. Eu li poucos autores na sua totalidade. Gosto mais de frequentar alguns livros ou mesmo algumas passagens. Posso dizer que li razoavelmente bem Manoel de Barros, mas não posso dizer o mesmo de Clarice ou Guimarães. Eu lembro-me de ter entrado devagar nos contos latino americanos... E de ter pensado, fascinadamente assustado: "nunca mais sairei daqui..." É um pouco verdade. São muitos autores bons da américa latina. São muitos livros, muitos contos. E, para dizer a verdade, é uma grande vertigem. Admitindo que a américa latina não é uma "mancha" literária, e há muitas especificidades, mas a pujança, isso a que quero chamar de vertigem, é poderosa. Ou pelo menos toca-me desse modo. Eu penso que é um pouco o que se passa com o continente africano: as nossas realidades são muitíssimo fortes, fora, totalmente fora dos limites apenas da lógica e do racional. Não são apenas os eventos que são bons para a literatura; o modo de as pessoas interpretarem a vida, de a atravessarem, de fazerem dela matéria para o teatro ou a poesia quotidiana, isso dá material forte para a literatura. Seja fantástica ou não, a literatura vive muito desse "olhar criativo" do que já foi olhado ou vivido pela população. Penso que nesse aspecto alguns autores africanos aproximam-se de autores latino americanos. Isto tudo para dizer que não são necessariamente os nomes, os autores; é mais a "coisa toda", a escrita e até a realidade latino-americana que me fascina. Vivo no Brasil de momento, tenho a oportunidade de viajar aqui dentro, e começo agora a circular mais por outros países. Tenho uma imensa curiosidade por alguns lugares que foram literários e onde é necessário pôr os olhos, o Chile, Colombia, Peru. Há-de chegar esse tempo. Também tenho vivido, não sei porquê, ultimamente, uma enorme ânsia de ir conhecer o Uruguay...
 
Inês: "Quantas madrugadas tem a noite", "E se amanhã o medo", "Dentro de mim faz sul", "Materiais para confecção de um espanador de tristezas". Como é o processo de criação destes títulos que, sozinhos, já têm tanto para contar?
Há títulos que nos chegam desde os primeiros dias de escrita. Ou um pouco antes. Há outros que vêm de dentro, seja da estória ou da boca de algum personagem. "Quantas madrugadas tem a noite" foi dificílimo. Teve outros títulos. De repente vi que já lá estava, numa frase do próprio AdolfoDido. Sobretudo, e acho que não sei explicar isto muito bem, o que busco é ficar bem com o título. Eu. Eu quero ficar em paz com um título, não quero arrepender-me dele uns anos depois. Isto é um compromisso poético, talvez metafísico, entre o livro, o conteúdo, e eu. "Dentro de mim faz Sul" é um dos mais equilibrados nesse sentido. Estamos todos em paz com essa sentença, o livro, o título, eu. Digo tudo isto a brincar, evidentemente. Quem escolhe o título dos meus livros são os mesmos dois vizinhos que os escrevem. Eu limito-me a assinar.
 
Denise: Sabemos da sua predileção pelo conto curto e pela influência de diferentes formas de linguagem nesse gênero. Quais as características mais importantes de um bom conto? Poderia citar alguns dos seus preferidos?
Isso não sei dizer... O conto tem que ser bom. Ponto final. Pode ser curto e bom. Longo e bom. E há estórias menos bem escritas. É evidente que Borges escreveu belíssimos contos. García Márquez também. Não tenho nomes presentes, mas certamente há contos de Borges, Guimarães, García Márquez, Luandino Vieira, Mia Couto, Manuel Rui, que estão entre os meus preferidos. Mas ficam sempre nomes por lembrar. Daqui meia hora a minha resposta seria diferente. Felizmente.
 
Inês: Disse numa entrevista que a história que queria contar é que determinava a técnica linguística utilizada, se recorreria a um estilo mais poético/lírico ou mais coloquial. Se estivesse a escrever a história da sua vida, como seria a linguagem?
Boa tentativa... Ainda não sei. Mas eu já me atrevi, ainda bastante novo, a escrever longos pedaços da história da minha vida. A infância está quase toda mapeada, e algumas (outras) coisas já estão escritas (só não estão ainda publicadas). Há a tendência para ser a voz de "um certo narrador" (do "Bom dia camaradas") a tratar da infância. Mas isso poderá mudar. Realmente escreve-se com a voz possível, com a voz que temos para perseguir uma pequena obsessão. Às vezes um livro é isso, algo que precisamos de contar, algo que temos que tirar de nós. Ou algo que nos acontece sonhar em forma de escrever. Por isso não sei se dá para pensar tanto na linguagem e na técnica. Surge. Sai. Lida-se com isso. E depois logo se vê. Muito se escreve também ao reescrever...
 
Denise: Entre as suas diversas obras (contos, poesias e romances) existe alguma que você tenha um afeto especial? E qual foi a mais difícil de escrever?
Com os livros, por vezes, aparece um lado cruel (não sei se necessário...): estamos incrivelmente ligados a eles e depois, com a finalização ou com a publicação, há um corte. Que dói, e que é necessário. Uns tempos mais tarde, fazemos as pazes. Comigo é assim. Fico farto, zangado, frustrado ou triste nas últimas revisões. Nem sempre o processo é claro, no sentido emocional. Ou seja, movemo-nos em territórios delicados no momento da escrita. E ao sair desses territórios, já não somos os mesmos. Certamente um dos mais difíceis de escrever foi o "madrugadas". Certamente, até ao momento, o mais difícil em todos os aspectos foi "Os transparentes". Ainda não fiz as pazes com ele. E já estamos em 2013...
 
Inês: Eu, sendo portuguesa, experimento algum estranhamento enquanto leio os seus livros, principalmente no que toca a algumas palavras ou expressões que não conheço, muitas delas tipicamente angolanas. Esse estranhamento é, para mim, uma das partes mais marcantes da leitura. Estando a sua obra traduzida para inglês, francês, espanhol, alemão, etc., preocupa-se que, durante o processo da tradução, se possa perder algum desse encanto?
Não se preocupe, eu, enquanto angolano, também sinto (bons ou não) estranhamentos quando leio literatura portuguesa ou brasileira. Faz parte, acho eu, dessa relação dúbia de muita e nenhuma familiaridade com a lingua e as linguagens de "um outro". Quanto às traduções, faço como um dos meus personagens em relação à água fervida: rezo. Rezo para que o resultado seja o menos mau possível, porque a tradução é uma área muito delicada e por melhores que sejam as intenções, o resultado é muito aleatório... Isto é, eu não posso controlar nada. Sugiro pequenas alterações nas duas linguas que posso entender (espanhol e inglês), mas são apenas sugestões pontuais. O sentido da coisa, o ritmo, a brincadeira, a ironia, o jogo, a pausa, são os elementos que dificultam e podem valorizar uma boa tradução. Chamo atenção para isto: os tradutores ocupam-se de uma arte muito elevada, na minha opinião, e são muitíssimo mal pagos. Devia haver manifestações em prol da valorização do trabalho dos tradutores. Estou a falar a sério. Agora, como em todas as profissões, existem bons e menos bons tradutores. Por isso, vou rezar mais um bocadinho...
 
Denise: Em entrevista ao programa entrelinhas você afirma que o olhar sobre a guerra e sobre o passado do seu país nas suas obras procura ser um olhar prospectivo; que pense no futuro de Luanda, de Angola. (Trecho: “Nós que crescemos em Luanda na realidade, apesar das pessoas não saberem, nós fomos os mais sortudos, porque a guerra estava fora de Luanda (...). Então eu tenho muita delicadeza e muito pudor em falar desse período de guerra que era, mas não para nós que estávamos em Luanda. Eu acho que, mesmo para falar da guerra e mesmo para falar do que não está bem em Angola, nós devemos falar numa atitude já pra frente, numa atitude a apontar para o futuro. Se eu não tenho soluções, e evidentemente que não as tenho, pelo menos que o meu tratamento literário seja um tratamento que dê dignidade à situação. Porque há coisas que já são indignas: a guerra é indigna, o sofrimento das crianças é indigno. Eu não posso reforçar aquilo que é indigno”. Ondjaki, programa entrelinhas). Poderia falar um pouco sobre como a literatura pode trazer novo significado para o sofrimento humano e sobre o papel da ficção para o futuro das sociedades?
Eu realmente não sei se a literatura poderá trazer um novo significado para o sofrimento humano... Eu penso que há qualquer coisa de poeticamente misterioso nisso que rodeia um livro. E o que rodeia um livro, somos todos os que vivemos a vida, os que a observamos, os que a escrevemos e os que a lemos, depois, em formato de livro. Isto é, tenho esperança que qualquer pessoa, qualquer velho ou criança, ao ler uma estória, poema ou teatro, esteja por alguns momentos numa condição de leveza. E não é leveza por ser "leve" ou "etéreo": é leveza porque está longe da sua condição quotidiana, contínua, de ser humano, ser social, ocupado, absorto no real. Perto de um livro, às vezes, estamos absortos do irreal, ou do surreal. Digamos, um livro existe mais no momento de ser lido, de ser interpretado. Quieto, ele é um objecto à espera de comunicar, e de ser desejado. Quieto, um livro é um conjunto de papel e letrinhas e ideias. Nas mãos, aos olhos de alguém, esse livro é um mundo, uma arma de imaginação, uma armadilha de desejos, um lugar de dor, fantasia e poesia. Se tudo isto, de vez em quando, em doses mínimas, puder "tocar" a humanidade, seja de que maneira for, então estamos num caminho interessante. Portanto, não sei se é verdade, mas talvez um dos papéis da ficção seja o de aproximar a Humanidade a si mesma. Ou não.
 
Inês: Enquanto luandense, quais as principais diferenças que encontra entre a Luanda da sua infância, descrita, por exemplo, em "Os da minha rua", e a Luanda dos dias de hoje, palco do seu novo romance "Os Transparentes"?
Não leve a mal, mas responder à sua questão é uma mera tentativa de se resumir uma coisa que leva uns bons meses a contar... E umas boas refeições e umas boas cervejas. Levei muito tempo a escrever esses dois livrinhos, sobretudo o último. Parte da sua resposta está em ambos. Parte está na vida, no dia a dia, no modo como hoje se encara a cidade... Somos todos culpados: quem manda, e quem se deixa mandar.
 
Denise: Para quem quer começar a enveredar pelo mundo da literatura africana, quais cinco livros você recomenda?
Seria uma resposta muito difícil...........
 
Inês: Os seus livros estão cheios de referências musicais (Caetano Veloso, Jorge Palma, Adriana Calcanhoto, canções soltas como Trem das Onze entre outras). Há alguma música que lhe provoque «aquela magia de um outro mundo» de "O Assobiador"?
Trecho da obra: «(...) que mexesse não só com o ouvido das pessoas, mas alcançasse, de modo incisivo, a profundidade das suas almas, o recôndito canto onde cada um escondia as suas coisas - essa assustadora gruta a que muitos chamam âmago do ser.»
Há certas músicas, certos momentos musicais de Wim Mertens (pianista belga) e mesmo de Keith Jarrett que já me provocaram altíssimas intensidades poéticas. Boas ou menos boas intensidades. Eu escrevo muito com música, usando territórios emocionais que são causados ou encontrados por via musical.
 
Denise: Uma curiosidade: que livro está lendo agora? E como seleciona suas leituras?
Não sei "como" selecciono... Estou quase sempre a ler poesia, não de modo sistematizado, mas conforme me apetece. Livremente. Mas acabei de reler "Ninguém escreve ao coronel" (García Márquez); li "A indestrutível condição de ter sido" (Helena Terra) e hoje mesmo comecei "Sabina e os manuscritos do Kuíto" (Arnaldo Santos).

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Rosa Montero - A Louca da Casa


A Louca da Casa não é um romance, não é um ensaio, não é com certeza uma biografia, mas tem um bocadinho de todos estes géneros literários. É, no fundo, um exercício sobre a vida e as lembranças de um escritor, a busca de inspiração, a loucura necessária para conviver com milhares de universos na cabeça e dar-lhes vida numa obra de ficção, o processo de criação de uma personagem e a vaidade alienada do autor que tantas vezes se manifesta pela necessidade de se ver lido e apreciado por uma multidão ou exposto em todas as montras de todas as livrarias.
É um livro leve sem ser ligeiro, com citações e excertos biográficos de ilustres autores (Capote, Kafka, Calvino, Tolstói, Vargas Llosa) que acabam muitas vezes por perder a objetividade quando comentados pela autora com algum excesso de parcialidade. Pelo meio, Rosa Montero aproveita para demonstrar a multiplicidade da escrita criativa, explorando o cerne de uma história de três maneiras radicalmente diferentes, para gáudio de uns e desespero de outros.
Fugindo deliberadamente da erudição académica, este livro aconselha-se, sobretudo, a quem gosta de ler ou escrever. Tenha por perto um bloco de notas - se nunca leu alguns dos autores referidos, vai ficar com vontade de o fazer.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Clarice Lispector - Água Viva

 
«Deixo-me acontecer.» E assim nasceu este livro. Não me interessa, por agora, saber se quem se deixa acontecer é a própria autora ou apenas a protagonista de um romance ficcionado. Se for este o caso, para simplificar, daqui para a frente chamar-lhe-ei Clarice.
Mas como comentar racionalmente uma obra quando ela própria não o é?
«Será que isto que estou te escrevendo é atrás do pensamento? Raciocínio é que não é. Quem for capaz de parar de raciocinar - o que é terrivelmente difícil - que me acompanhe.» Tentei. Talvez tenha conseguido algumas vezes, em muitas falhei.
Se escrever sobre Clarice é um exercício difícil, lê-la não o é menos.
Somos arrastados nesta invasão impudica à cabeça de um ser humano, em instantes tão anteriores à formação do pensamento. É um livro orgânico, nascido de um doloroso parto - palavra tantas vezes repetida.
«Eu não tenho enredo de vida? sou inopinadamente fragmentária. Sou aos poucos. Minha história é viver.» E assim vive também esta obra, construída pela união de poesias em prosa, não necessariamente consecutivas. Parágrafos que podem ser lidos aleatoriamente sem que percam o seu propósito. Estas páginas gritam desordem e fragmentação porque essa é a (i)lógica do pensamento.
«Ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de sentido nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve. A densa selva de palavras envolve espessamente o que sinto e vivo, e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que fica fora de mim.»
Quantas vezes quis abraçá-la ainda que soubesse que ela repeliria esse abraço.
É tão difícil ler Clarice, mas devia ser tão mais difícil sê-lo.
 
Obrigada à Ju, a maior amante de Clarice que já conheci, que me ofereceu este livro e, sem querer e sem saber, me incutiu urgência em lê-lo.
 
 
Citações:
 
«Vou agora mesmo prestar-te contas daquela primavera que foi bem seca. O rádio estalava ao captar-lhe a estática. A roupa eriçava-se ao largar a eletricidade do corpo e o pente erguia os cabelos imantados - esta era uma dura primavera. Ela estava exausta do inverno e brotava toda elétrica.(...)
Mas eu percebia um primeiro rumor como o de um coração batendo debaixo da terra. Colocava quietamente o ouvido no chão e ouvia o verão abrir caminho por dentro e o meu coração embaixo da terra - "nada! eu não disse nada!" - e sentia a paciente brutalidade com que a terra fechada se abria por dentro em parto, e sabia com que peso de doçura o verão amadurecia cem mil laranjas (...).»
 
«Mas por que esse mal-estar? É porque não estou vivendo do único modo que existe para cada um de se viver e nem sei qual é.»
 
«Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se.»
 
«Ah viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não para, viver parece ter sono e não poder dormir - viver é incômodo.»

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Afonso Cruz - O Cultivo de Flores de Plástico


A intensidade e a diversidade de emoções que este livro provoca faz com que seja difícil falar sobre ele. É, aliás, cada vez mais evidente que devemos desistir da tarefa de tentar rotular Afonso Cruz. Não é só talento, é uma incrível capacidade de surpreender, de nos levar em poucas linhas a passar da introspeção ao riso, da angústia ao reconhecimento de certos padrões sociais que nos envergonham.
A história destes quatro sem-abrigo que partilham as ruas e a miséria está muito mais próxima de nós do que gostamos de acreditar. Faça-se um grande SOS nas avenidas. Ainda assim, talvez não haja quem nos salve, porque não há quem queira ver.


Citações:

«Andamos a regar flores de plástico, é isso que fazemos. Temos coisas que não servem para nada. É tudo plástico. (...) Temos coisas, em vez de tentarmos ser felizes, substituímos a vida por plástico, (...). Trabalhamos para regar uma vida destas.»

«Só papéis, há papéis em todo o lado. Burocracias e tal. Foda-se! Um dia morremos e vemos Deus cara a cara e percebemos: olha, é o Kafka.»

«Couraçado Korzhev: Tenho medo que Deus não veja muito bem, que não tenha janelas e não veja o que se passa cá em baixo. Todos os dias ando uma letra.
(...)
Vejo no mapa que ruas tenho de percorrer até ter, por exemplo, a letra "R". Vejo que itinerário tenho de percorrer para fazer essa letra. Quinhentos metros de uma avenida, viro à direita num largo, volto à avenida principal, apanho uma oblíqua para fazer a perna do "R". Vou escrevendo frases que se vejam do céu, blya, frases gigantes que consigam ler-se, mesmo quando não lemos bem ao perto.
(...)
Lili: O que vais escrever agora?
(...)
Couraçado Korzhev: Hoje é um percurso em "v". Vou escrever "vai-te foder".»

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Cristina Drios - Os Olhos de Tirésias


Uma série de acasos fez com que fosse impossível que eu passasse ao largo deste livro. O título despertou a minha atenção e o interesse redobrou-se quando soube que a editora era a Maria do Rosário Pedreira. Era difícil fugir a tão forte cartão de visita.
Esta semana, a capa branca sorriu-me atrevidamente de uma montra à beira de casa. No mesmo dia, tal como tudo se tinha alinhado até então, acabara de terminar outra leitura e sentia-me pronta para um romance assim: de uma autora desconhecida, sobre um tema que é tantas vezes preterido à sua irmã mais velha - a segunda guerra mundial.
As primeiras 50 páginas revelaram aquilo que eu tinha esperança de encontrar: um livro muito bem escrito. Uma escrita madura, com traços bem definidos e que nos leva por caminhos de quem sabe muito bem o que quer dizer. Talvez peque, no entanto, pelo exagero na busca da perfeição. Dei por mim a pensar no esforço que cada frase parecia conter, como se tudo tivesse sido pensado milimetricamente e não houvesse espaço para o improviso ou para deixar que aquela história crescesse sozinha e falasse por si.
O enredo é engraçado e leva a que o leitor se interrogue se, em algum momento, a realidade terá invadido a ficção. Terá existido a fotografia de um qualquer Mateus Mateus com 2 metros de altura? Será que em algum ponto a autora se funde com a neta deste soldado e as suas tardes passadas num quartinho/escritório para os lados do Príncipe Real? Talvez nunca venhamos a saber, mas, convenhamos, o mais certo é que isso também não seja o mais importante.


Citações:

«Por isso me agrada tanto observar, em locais de chegadas e partidas - um terminal de aeroporto ou uma estação ferroviária -, a forma como cada pessoa se move, a andar, a correr, quantas vezes a tentar escapar-se, na única direcção possível, o futuro.»

«A noite abateu-se a rilhar os dentes de angústia e incerteza sobre o fechar de um dia sem história»

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Edição limitada, numerada e assinada pelo autor


A estreia de Afonso Cruz no teatro conta a história de quatro sem-abrigo. A peça está em cena no Clube Estefânia, em Lisboa, até 28 de julho (ver mais aqui) e o livro já está à venda em pré-lançamento
A edição é limitada a 1000 exemplares (pelo sim, pelo não, já encomendei o meu) e os direitos de autor revertem a favor da Associação Casa. Tudo a favor, portanto. É correr, minha gente.

domingo, 14 de julho de 2013

Dulce Maria Cardoso - O Retorno


Um livro sobre o tema que, nos dias de hoje, obceca os portugueses, 40 anos depois. Finalmente fala-se abertamente de uma ferida mal cicatrizada que foi tabu e palco de medos, como se falar sobre ela fosse reabri-la. Finalmente deita-se cá para fora tudo o que se tentou esquecer, o que se empurrou para um canto da memória, como se, evitando, pudéssemos fingir que nunca existiu.
Dulce Maria Cardoso expôs sem paninhos quente o drama dos países (colonizadores e colonizados) e das suas gentes. Numa linguagem crua, que não poupou a visita aos preconceitos enraizados, aos ditos politicamente incorretos.
É um livro duro, real, com uma escrita um pouco densa que não pode ser lida de ânimo leve.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Ondjaki - Os Transparentes

  
Numa altura em que Luanda é a pista de aterragem para tantos emigrantes portugueses, é essencial que este livro faça parte da mesinha de cabeceira de todos eles. Ler Os Transparentes é como espreitar por uma janela e ver Luanda inteira. Mais do que isso, a cada página o leitor é absorvido pela cidade e convidado a ver através dos olhos de quem a ela pertence.
Encontraremos, claro, a história que todos conhecemos, de governantes corruptos que forçam a miséria de cidadãos honestos («fui comendo cada vez menos para que os meus filhos pudessem comer o pouco que eu não comia») enquanto exploram e dividem entre si as muitas riquezas de uma terra que tem tudo. Mas o livro não nos deixa no abismo da história única, mostra-nos um povo alegre e desenrascado, que inventa negócios excêntricos e formas de sobreviver, rindo e dançando com a boa disposição que lhes permite esquecer o tanto que lhes tiraram e tiram todos os dias.
Vamos reencontrar personagens queridas de outros livros, mergulhar numa banda sonora escolhida criteriosamente, rir quase sempre, emocionar-nos algumas vezes. Tudo isto com a qualidade literária que já se espera de Ondjaki, mas num estilo menos fechado do que, por exemplo, em Quantas Madrugadas Tem a Noite.
Dos livros que li do autor, este foi o romance que teve mais espaço para ser romance.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Roman Krznaric - Como encontrar o trabalho perfeito

 
«Não se trata de encontrar o emprego de sonho que preenche todos os nossos requisitos - este é um ideal mitológico que é aconselhável abandonar.»
 
Talvez não existam trabalhos perfeitos, mas este livro explora conceitos interessantes como: o "paradoxo da escolha" - o que fazer num mundo cheio de possibilidades? -, a ciência falível dos testes de personalidade, as cinco dimensões que podem dar um sentido ao trabalho («ganhar dinheiro, alcançar determinado estatuto, fazer a diferença, seguir os nossos interesses e utilizar o nosso talento»), a "esteira hedónica" (que não é mais do que o conceito que explica que, à medida que temos mais, as nossas expectativas aumentam e passamos a querer ter mais ainda).
Fala sobre a pressão social e sobre a angústia que sentimos e que nos limita quando pensamos que, com uma mudança de rumo, vamos desperdiçar os anos que investimos na nossa formação. Formação essa que escolhemos aos 17 anos (ou antes até), quando éramos uma pessoa totalmente diferente da que somos agora. E, já que falamos em crescimento, convém lembrar que o facto de crescermos também faz com que o nosso trabalho perfeito de hoje não seja o mesmo de amanhã. Lidemos com isso.
Afinal, como mudar? Fazendo-o gradualmente ou drasticamente? O que é isso de «licenças sabáticas radicais, projetos de reorientação ou pesquisa conversacional»?
 
É um livro interessante, com algumas repetições aqui e ali a roçar a autoajuda (passemos à frente os pedidos de reflexão e elaboração de mapas), de leitura fácil, mas com conceitos teóricos que podemos absorver e relembrar em certos momentos da nossa vida.
 
«A crença que o trabalho é virtuoso causa bastante prejuízo.»
Bertrand Russel

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Maria do Rosário Pedreira - Poesia Reunida



Que livro incrível.
E que angústia no último poema. Que seja mentira. Que volte.
Porque estas páginas, apesar de muito, não vão chegar nunca.

domingo, 16 de junho de 2013

sábado, 8 de junho de 2013

sábado, 25 de maio de 2013

No LeV


Cruzei-me com o Afonso Cruz e fiz-lhe a pergunta que me andava a inquietar.
Ainda esta semana conto vir dizer-vos o que ele me respondeu.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Lydia Davis


Ela acaba de ganhar o The Man Booker International Prize 2013 e os seus contos chegam-me às mãos.
Para começar a ler.
Já.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Afonso Cruz - Jesus Cristo bebia cerveja

 
Este livro foi a maior surpresa do ano até agora. Eu imaginava que fosse bom, mas as minhas vistas curtas nunca me permitiriam entrever que fosse TÃO bom.
Já a imaginação de Afonso Cruz é um completo universo em expansão, não existem limites para aquilo que ele é capaz de criar. Jerusalém no Alentejo? A última ceia com cerveja? O livro que uma personagem está a ler anexado ao próprio livro? Um ensaio sobre a importância das nádegas na formação de um cérebro capaz de pensar? A originalidade desde senhor é assombrosa.
Como vem sendo hábito nesta geração de escritores, voltamos ao ambiente rural, ao provincianismo, à disforia e à injustiça da vida. No meio de tanta tristeza salva-nos o humor negro e a ironia que nos fazem rir com prazer («Pegou numa corda e pendurou-se numa figueira. Foi o mais estranho fruto daquela árvore.»; «(...) e até ela comer a nossa farmácia.»).
O capítulo 37 foi uma das coisas mais bonitas (e mais tristes) que li nos últimos tempos.
Resta-me o pânico de imaginar que posso ter lido o melhor livro dele e o medo de afirmar que, depois disto, a par com Valter Hugo Mãe, Afonso Cruz é o meu jovem escritor português preferido.
 
Trago uma pergunta cá dentro que grita à procura de resposta, resposta essa que só Afonso Cruz me poderia dar. Preciso de saber, afinal, se Rosa leria este livro. E, se sim, o que acharia dele.
 

Citações:
 
«Mesmo os lugares mais rarefeitos, como o espaço sideral e a estupidez humana, são preenchidos por alguma coisa: luz, metais leves, preconceitos, partículas e subpartículas dos átomos, radiações, chavões e telenovelas.»
 
«Nós só temos um cérebro capaz de pensar na lógica de Aristóteles e na teologia de Tomás de Aquino porque temos umas nalgas extrovertidas.(...) Acaba-se com o traseiro e vai-se o pensamento mais piedoso.»
 
«É evidente que ninguém é verdadeiramente Deus se não experimentar passar umas tardes a jogar dominó e lerpa nos jardins e nas praças, enquanto desenvolve a bizarra capacidade de apreciar rosé com gasosa.»
 
«- O amor não se compra.
- Mas paga-se caro.»

terça-feira, 21 de maio de 2013

A(d/n)otado #5

Livros

Quando entro noutras casas e sou apresentado a prateleiras rigorosamente organizadas por ordem alfabética, pergunto-me se estes guardarão rancor pelo caos a que os obrigo.
Em ocasiões que lhes parecem aleatórias, escolho dois ou três e levo-os a dar uma volta ao mundo. Habituados à luz desta casa, acredito que essa montanha-russa lhes arregale os olhos.
Regressam estrangeirados, com a companhia de outros livros, novos, a falarem com sotaque. Se tiverem sorte, trazem as capas mais ou menos dobradas. Só por grande casualidade ocuparão o lugar que tinham antes.
Imagino aquilo que contam aos outros, aos que não saíram daqui. Quase de certeza que o seu relato lhes aumenta a ansiedade. Cada vez que me aproximo, haverá alguns a quererem aventura, a desejarem que o meu braço se estenda na sua direção e, provavelmente, haverá outros agarrados ao que conhecem, com medo de amplitudes térmicas desconhecidas.
Eu olho por eles, eles olham por mim. O tempo continua. Sei que têm memória e, quando não estiver cá, espero que não esqueçam o quanto dependi deles. Pertenço-lhes mais do que eles me pertencem a mim.

José Luís Peixoto, em Jornal de letras, artes e ideias (1 a 14 de maio de 2013)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A(d/n)otado #4

«A natureza não gosta de espaços vazios e preenche-os como um burocrata preenche requerimentos. Não deixa buracos em lado nenhum. Mesmo os lugares mais rarefeitos, como o espaço sideral e a estupidez humana, são preenchidos por alguma coisa: luz, metais leves, preconceitos, partículas e subpartículas dos átomos, radiações, chavões e telenovelas. A natureza enche chouriços, não há espaço vazio nas suas tripas.»

Afonso Cruz, em Jesus Cristo Bebia Cerveja

terça-feira, 2 de abril de 2013

A(d/n)otado #3

«Porra, meu, dás pena, quer dizer, estás neste mundo só pra o que der e vier, não queres meter o corpo e o coração nele?!»

Ondjaki, em Quantas Madrugadas Tem a Noite

terça-feira, 5 de março de 2013

David Lodge - A Consciência e o Romance


Maravilhoso. Um livro sobre livros e escritores, sobre críticos e leitores. Um autêntico laboratório de autópsias, adornado pelo humor lodgiano (alguém já inventou esta palavra? Não? Posso ficar com os créditos?), onde se desventram romances e ficcionistas.
Uma obra de não ficção de um grande autor que é igualmente um grande académico mas que faz questão de escapar à pretensão e à arrogância de esfregar o seu conhecimento na cara dos outros. Num mundo cheio de sobranceria intelectual não deixa de ser reconfortante a forma modesta como Lodge admite alguns dos seus erros.
A Consciência e o Romance ensina, muito!, explica ao comum leitor vários pormenores da arte de idealizar ficção e da tortuosa tarefa de passá-la para o papel. Escancara a porta dos bastidores e, inevitavelmente, faz com que não consigamos olhar para um romance da mesma forma depois de ler este brilhante conjunto de ensaios. Como se isto não fosse já suficiente, Lodge apresenta-nos de forma ligeira a sua visão de outros autores consagrados como Henry James, Charles Dickens, James Joyce, Virginia Woolf, Kingsley e Martin Amis, Philip Roth, etc. etc.
David Lodge é fascinante (o capítulo final bastaria para prová-lo) e eu recolho-me à minha insignificância abstendo-me de tentar arranjar formas para exprimir o quão incrível é este livro. Recomenda-se a quem se interessa por crítica literária e desaconselha-se, veementemente, a quem quer continuar a ter o prazer de ler um romance através do filtro transparente do inocente leitor.
 
 
Citações:
 
«A simples decisão de continuar a ler um romance ou um poema até ao fim é, em si mesma, uma espécie de acto crítico. Neste sentido lato, a crítica é, como T. S. Eliot afirmou, «tão inevitável como respirar».»

«Em 1996 fui convidado para fazer uma palestra num congresso internacional de especialistas em Kierkegaard realizado em Copenhaga e cujo tema era «Kierkegaard e o Significado de Significar». O que se segue é uma versão reduzida do que eu disse nessa ocasião. Nunca cheguei a descobrir o significado do título do colóquio.»

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Andréa Del Fuego - Os Malaquias


O meu pai ofereceu-me este livro ontem ao fim da tarde. Sentei-me à beira do fogão de lenha enquanto esperávamos pelo jantar e comecei a ler. Deixei-me agarrar pelo início cru, por uma escrita madura e uma autora que parecia não ter compaixão pelas suas personagens.
Não descansei enquanto não terminei de ler a história de Nico, Antônio e Júlia inundada pelo realismo mágico que na América Latina é rei e senhor, que quase sempre nos confunde e inebria.
Andréa del Fuego convenceu-me com as suas frases pensadas ao pormenor («Uma esfera perfeita nasceu na raiz dos olhos, a película estourou no meio do rosto»), com as suas aliterações convenientes e propositadas, com as suas metáforas irreais tão vindas da terra e dos sonhos.
Os Malaquias é um livro sobre desencontros tantas vezes forçados outras tantas permitidos. Um livro que mergulha e flutua na repetição incessante e deliberada da palavra «água» e que nela acaba por desaguar concluindo, enfim, «Em água turva, as substâncias não se veem».

domingo, 13 de janeiro de 2013

Enrique Vila-Matas - Dublinesca


Como se classifica enquanto leitor? A resposta a esta pergunta diz-lhe se está ou não preparado para ler Dublinesca.
Este é um livro para leitores maduros, leitores que tragam Joyce num bolso e Beckett no outro. É uma homenagem aos grandes autores, aos grandes editores, e (porque não dizê-lo?) aos grandes leitores.
Partilhe a angústia de Samuel Riba, um editor literário aposentado que sofre pelo fim da era Gutenberg, e celebre um requiem pelo «mundo derrubado da edição literária, mas também pelo mundo dos verdadeiros escritores e dos leitores com talento».
Façamos todos um minuto de silêncio pela morte daquela era em que, pelo bem da humanidade, nunca seria dada a E. L. James uma página em branco.
 
(silêncio)
 
Não nos deixemos intimidar por um livro extremamente literário, que dá trabalho, que nos insulta e nos atira à cara o tanto que ainda nos falta ler.
Não se sinta mal, caro leitor, se não conhecer alguns destes nomes, preocupe-se se não conhecer nenhum. Isso significará que ainda tem um longo caminho para percorrer. Mas não tenha pressa, tome o seu tempo, estes escritores nunca ficarão fora de moda e, sendo certo que já morreram, se se puser já a andar é bem provável que ainda os alcance.
Vamos a isso? Encontramo-nos na meta!


Citações:

«Pois um editor literário não acaba por ser um ventríloquo que cultiva à volta do seu catálogo as mais variadas vozes distintas?»
 
«A Lua brilha, não tendo outra alternativa, sobre o nada de novo.»

sábado, 12 de janeiro de 2013

A(d/n)otado #2

«Sonha com o dia em que a queda do feitiço do best-seller dê lugar ao reaparecimento do leitor com talento e que se retomem os termos do contraro moral entre autor e público. Sonha com o dia em que os editores literários possam respirar de novo, aqueles que se mortificam por um leitor activo, por um leitor suficientemente aberto para comprar um livro e permitir na sua mente o desenho de uma consciência radicalmente diferente da sua própria. Acredita que, se se exige tanto talento a um editor literário ou a um escritor, deve-se exigi-lo também ao leitor. Porque não devemos enganar-nos: a viagem da leitura passa, muitas vezes, por terrenos difíceis que exigem capacidade de emoção inteligente, vontade de compreender o outro e de se aproximar de uma linguagem distinta das nossas tiranias quotidianas. (...) São tão necessárias as mesmas habilidades para escrever como para ler. Os escritores desiludem os leitores, mas também acontece o reverso e os leitores desiludem os escritores quando só procuram nestes a confirmação de que o mundo é como eles o vêem...»
 
Enrique Vila-Matas, em Dublinesca

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Eduardo Galeano - O Livro dos Abraços

 
«Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais.»
E esse é o motivo por que este livro tinha de nascer. Era bom de mais para ficar esquecido numa gaveta, teria de ser celebrado e nunca nos perdoaríamos se não existisse.
 
O Livro dos Abraços é feito de pequenos fragmentos de uma memória cheia. Cheia de afetos, mas igualmente cheia de pesadelos que Galeano insiste em não esquecer e que lhe permitem, com propriedade, enaltecer a vida e a liberdade. Pelo caminho presenteia o leitor com pequenas preciosidades como «aquele apagador de vulcões que o diabo deixou zarolho, por vingança, cuspindo em seu olho» ou «Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre as minhas pálpebras. Se pudesse, dizia-lhe que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada na minha garganta».
 
É também um manifesto político que fará sentido enquanto houver oprimidos e opressores, um grito que expõe as falsas democracias controladas por invisíveis e tiranos mercados financeiros. Galeano, como outros, tem a ditadura literalmente marcada na pele. Tal como o «enfarte agudo de miocárdio» é a «garra da morte no centro do peito», assim a repressão é a mão que em vez de esmagar os subversivos lhes dá força e os empurra contra si.
 
«Tínhamos comido medo ao pequeno-almoço, medo ao almoço e ao jantar, medo; mas não tinham conseguido transformar-nos neles».
E nós agradecemos. Num Mundo que parece ter-se esquecido das pessoas, é bom saber que há autores que nunca o fazem.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Nuno Amado - À Espera de Moby Dick


Escrevo assim que acabo de virar a última página. Há livros que me pedem ensurdecedoramente para o fazer. Não sei se vou gostar tanto dele amanhã como gosto hoje, por isso é justo que lhe dê uma palavrinha antes de saber se as saudades apertarão ou não quando os dias se sucederem à nossa despedida.
Não podemos aclamar Nuno Amado como um Escritor. Ainda. Não irei correr para as livrarias sempre que lançar um novo romance, mas afirmo que correrei para as caixas registadoras sempre que a sinopse me agradar. Como esta.
A história deste romance é cativante e a forma como ela se desenrola aos nossos olhos também. Vejo-a transformada num filme com uma fotografia espantosa que saltaria dos Açores às capitais europeias, que guardaria no tempo as expressões destas personagens, ora melancólicas ora eufóricas. Personagens que dão sentido à expressão popular "de génio e louco todos temos um pouco".
À espera de Moby Dick faz o que tem de fazer: comove quando tem de comover, faz-nos sorrir quando é preciso e surpreende-nos várias vezes. Sabe-me bem confessar que a 20 páginas do fim tive de parar para recuperar o fôlego e só depois continuar a ler.
Se me obrigarem a apontar defeitos foco-os na quantidade descomedida de metáforas, em algumas frases demasiado longas que não acrescentam nada a esta belíssima história e talvez nos demasiados clichés. E quando me preparava para acrescentar à lista o exagerado turismo por cidades mundiais também elas clichés, o autor dá-me uma boa razão para retirar o pensamento antes de o dizer em voz alta. Touché!
Não estou rendida ao escritor mas faço vénias ao contador de histórias. Este é um livro que se recomenda a curiosos. A quem quer saber "em que ecossistema se confundiria uma vaca preta e branca com o seu habitat" ou "quantas lágrimas por dias chora um português" e se este valor "é superior ou inferior à média europeia". Não vão encontrar as respostas, mas ao menos vão saber que houve alguém que deixou estas perguntas imortalizadas num livro.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Retrato literário #1

 
Há dias pensei exatamente o mesmo quando li a contracapa da nova edição de Anna Karenina da Relógio D'Água. O que é que lhes deu?
 
Se ainda não leram o livro, mantenham-se longe disso.
 
A sério.
 
Depois não digam que não avisei.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Daniel Defoe - As Aventuras de Robinson Crusoe


É por causa de livros como este que eu não abandono leituras a meio. Ouso explicar-vos porquê.
 
Naveguei entusiasticamente durante as primeiras 30 páginas, porém, nas 130 que se seguiram, senti-me como se estivesse em alto mar e durante meses não houvesse terra à vista. As mesmas pessoas, dentro do mesmo barco, entretidas com as mesmas rotinas: comer, remar, dormir. Em loop. E eu que padeço de cinetose (google it!). Foi a adrenalina de passar o Bojador e depois resistir e suportar a calmaria entorpecedora do restante percurso. Adormeci vezes sem conta, talvez o meu sofá seja bom de mais. Sejamos justos, não estava a ser terrível mas tornou-se incrivelmente repetitivo.
Mas assim que a capa desta edição fez sentido, a coisa melhorou um pouco. Não o suficiente para eu ter dado como bem empregado o tempo gasto nas primeiras páginas, mas pelo menos para não me arrepender de não o ter largado ao fim da primeira meia centena, como fazem as pessoas sensatas quando acham que o livro que estão a ler não liga com elas.
 
Em suma, é um livro de aventuras, uma história sobre navegadores de mares já navegados, ilhas desertas, engenhos que aliviam a sobrevivência, solidão muitas vezes compensada, pouco medo e confiança na Providência. Tudo isto em muita quantidade. Muitas vezes. Crusoe é o maior da sua rua e ficamos a saber porquê. O homem era inventivo e corajoso, verdade lhe seja feita.
Daniel Defoe criou uma história para adolescentes destemidos e inquietos. Para vários amantes da literatura é capaz de servir.
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