quinta-feira, 25 de julho de 2013

Afonso Cruz - O Cultivo de Flores de Plástico


A intensidade e a diversidade de emoções que este livro provoca faz com que seja difícil falar sobre ele. É, aliás, cada vez mais evidente que devemos desistir da tarefa de tentar rotular Afonso Cruz. Não é só talento, é uma incrível capacidade de surpreender, de nos levar em poucas linhas a passar da introspeção ao riso, da angústia ao reconhecimento de certos padrões sociais que nos envergonham.
A história destes quatro sem-abrigo que partilham as ruas e a miséria está muito mais próxima de nós do que gostamos de acreditar. Faça-se um grande SOS nas avenidas. Ainda assim, talvez não haja quem nos salve, porque não há quem queira ver.


Citações:

«Andamos a regar flores de plástico, é isso que fazemos. Temos coisas que não servem para nada. É tudo plástico. (...) Temos coisas, em vez de tentarmos ser felizes, substituímos a vida por plástico, (...). Trabalhamos para regar uma vida destas.»

«Só papéis, há papéis em todo o lado. Burocracias e tal. Foda-se! Um dia morremos e vemos Deus cara a cara e percebemos: olha, é o Kafka.»

«Couraçado Korzhev: Tenho medo que Deus não veja muito bem, que não tenha janelas e não veja o que se passa cá em baixo. Todos os dias ando uma letra.
(...)
Vejo no mapa que ruas tenho de percorrer até ter, por exemplo, a letra "R". Vejo que itinerário tenho de percorrer para fazer essa letra. Quinhentos metros de uma avenida, viro à direita num largo, volto à avenida principal, apanho uma oblíqua para fazer a perna do "R". Vou escrevendo frases que se vejam do céu, blya, frases gigantes que consigam ler-se, mesmo quando não lemos bem ao perto.
(...)
Lili: O que vais escrever agora?
(...)
Couraçado Korzhev: Hoje é um percurso em "v". Vou escrever "vai-te foder".»

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Cristina Drios - Os Olhos de Tirésias


Uma série de acasos fez com que fosse impossível que eu passasse ao largo deste livro. O título despertou a minha atenção e o interesse redobrou-se quando soube que a editora era a Maria do Rosário Pedreira. Era difícil fugir a tão forte cartão de visita.
Esta semana, a capa branca sorriu-me atrevidamente de uma montra à beira de casa. No mesmo dia, tal como tudo se tinha alinhado até então, acabara de terminar outra leitura e sentia-me pronta para um romance assim: de uma autora desconhecida, sobre um tema que é tantas vezes preterido à sua irmã mais velha - a segunda guerra mundial.
As primeiras 50 páginas revelaram aquilo que eu tinha esperança de encontrar: um livro muito bem escrito. Uma escrita madura, com traços bem definidos e que nos leva por caminhos de quem sabe muito bem o que quer dizer. Talvez peque, no entanto, pelo exagero na busca da perfeição. Dei por mim a pensar no esforço que cada frase parecia conter, como se tudo tivesse sido pensado milimetricamente e não houvesse espaço para o improviso ou para deixar que aquela história crescesse sozinha e falasse por si.
O enredo é engraçado e leva a que o leitor se interrogue se, em algum momento, a realidade terá invadido a ficção. Terá existido a fotografia de um qualquer Mateus Mateus com 2 metros de altura? Será que em algum ponto a autora se funde com a neta deste soldado e as suas tardes passadas num quartinho/escritório para os lados do Príncipe Real? Talvez nunca venhamos a saber, mas, convenhamos, o mais certo é que isso também não seja o mais importante.


Citações:

«Por isso me agrada tanto observar, em locais de chegadas e partidas - um terminal de aeroporto ou uma estação ferroviária -, a forma como cada pessoa se move, a andar, a correr, quantas vezes a tentar escapar-se, na única direcção possível, o futuro.»

«A noite abateu-se a rilhar os dentes de angústia e incerteza sobre o fechar de um dia sem história»

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Edição limitada, numerada e assinada pelo autor


A estreia de Afonso Cruz no teatro conta a história de quatro sem-abrigo. A peça está em cena no Clube Estefânia, em Lisboa, até 28 de julho (ver mais aqui) e o livro já está à venda em pré-lançamento
A edição é limitada a 1000 exemplares (pelo sim, pelo não, já encomendei o meu) e os direitos de autor revertem a favor da Associação Casa. Tudo a favor, portanto. É correr, minha gente.

domingo, 14 de julho de 2013

Dulce Maria Cardoso - O Retorno


Um livro sobre o tema que, nos dias de hoje, obceca os portugueses, 40 anos depois. Finalmente fala-se abertamente de uma ferida mal cicatrizada que foi tabu e palco de medos, como se falar sobre ela fosse reabri-la. Finalmente deita-se cá para fora tudo o que se tentou esquecer, o que se empurrou para um canto da memória, como se, evitando, pudéssemos fingir que nunca existiu.
Dulce Maria Cardoso expôs sem paninhos quente o drama dos países (colonizadores e colonizados) e das suas gentes. Numa linguagem crua, que não poupou a visita aos preconceitos enraizados, aos ditos politicamente incorretos.
É um livro duro, real, com uma escrita um pouco densa que não pode ser lida de ânimo leve.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Ondjaki - Os Transparentes

  
Numa altura em que Luanda é a pista de aterragem para tantos emigrantes portugueses, é essencial que este livro faça parte da mesinha de cabeceira de todos eles. Ler Os Transparentes é como espreitar por uma janela e ver Luanda inteira. Mais do que isso, a cada página o leitor é absorvido pela cidade e convidado a ver através dos olhos de quem a ela pertence.
Encontraremos, claro, a história que todos conhecemos, de governantes corruptos que forçam a miséria de cidadãos honestos («fui comendo cada vez menos para que os meus filhos pudessem comer o pouco que eu não comia») enquanto exploram e dividem entre si as muitas riquezas de uma terra que tem tudo. Mas o livro não nos deixa no abismo da história única, mostra-nos um povo alegre e desenrascado, que inventa negócios excêntricos e formas de sobreviver, rindo e dançando com a boa disposição que lhes permite esquecer o tanto que lhes tiraram e tiram todos os dias.
Vamos reencontrar personagens queridas de outros livros, mergulhar numa banda sonora escolhida criteriosamente, rir quase sempre, emocionar-nos algumas vezes. Tudo isto com a qualidade literária que já se espera de Ondjaki, mas num estilo menos fechado do que, por exemplo, em Quantas Madrugadas Tem a Noite.
Dos livros que li do autor, este foi o romance que teve mais espaço para ser romance.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Roman Krznaric - Como encontrar o trabalho perfeito

 
«Não se trata de encontrar o emprego de sonho que preenche todos os nossos requisitos - este é um ideal mitológico que é aconselhável abandonar.»
 
Talvez não existam trabalhos perfeitos, mas este livro explora conceitos interessantes como: o "paradoxo da escolha" - o que fazer num mundo cheio de possibilidades? -, a ciência falível dos testes de personalidade, as cinco dimensões que podem dar um sentido ao trabalho («ganhar dinheiro, alcançar determinado estatuto, fazer a diferença, seguir os nossos interesses e utilizar o nosso talento»), a "esteira hedónica" (que não é mais do que o conceito que explica que, à medida que temos mais, as nossas expectativas aumentam e passamos a querer ter mais ainda).
Fala sobre a pressão social e sobre a angústia que sentimos e que nos limita quando pensamos que, com uma mudança de rumo, vamos desperdiçar os anos que investimos na nossa formação. Formação essa que escolhemos aos 17 anos (ou antes até), quando éramos uma pessoa totalmente diferente da que somos agora. E, já que falamos em crescimento, convém lembrar que o facto de crescermos também faz com que o nosso trabalho perfeito de hoje não seja o mesmo de amanhã. Lidemos com isso.
Afinal, como mudar? Fazendo-o gradualmente ou drasticamente? O que é isso de «licenças sabáticas radicais, projetos de reorientação ou pesquisa conversacional»?
 
É um livro interessante, com algumas repetições aqui e ali a roçar a autoajuda (passemos à frente os pedidos de reflexão e elaboração de mapas), de leitura fácil, mas com conceitos teóricos que podemos absorver e relembrar em certos momentos da nossa vida.
 
«A crença que o trabalho é virtuoso causa bastante prejuízo.»
Bertrand Russel
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